segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

A performance do cabelo




É possível perceber a importância da gestualidade na análise do quotidiano humano.
Conforme afirma Erving Goffman (1975), o gesto é o nosso idioma corporal. Tal idioma é uma das ferramentas utilizada pelo indivíduo na representação de seu “eu” (GOFFMAN, 2009). Se o cabelo é um gesto corporal, se ele possui diferentes maneiras de se apresentar – e de representar um indivíduo – e se tais maneiras remetem a hábitos, crenças e status de determinadas pessoas, então estamos tratando da performance do cabelo. O cabelo é uma das ferramentas corporais mais expressivas: ele “fala” antes que tenhamos a chance de nos expressarmos verbalmente. O cabelo compõe nossa imagem para o mundo; ele faz parte da apresentação externa do indivíduo, aquela que mais se expõe e que mais rapidamente é percebida por outros. Ou seja, é uma das imagens corporais que mais “dialoga” com nossos interlocutores. A maneira como cada pessoa concebe sua própria imagem e como pretende mantê-la está directamente ligada ao desempenho dos nossos papéis sociais. Assim como em uma peça teatral, ao exercer um determinado papel na sociedade o indivíduo está, de maneira tácita, requerendo que sua plateia acredite em sua actuação. Estas formas de actuação fazem parte das representações das pessoas. (GOFFMAN, 2009) Da mesma forma, tais representações podem ser percebidas como cerimónias quando reforçam “valores oficiais comuns da sociedade” e, portanto, idealizados pelos espectadores. (GOFFMAN, 2009, p. 41)
De qualquer maneira, o indivíduo deverá se expressar impressionando sua plateia e o modo como será percebido por ela. Portanto, seja no uso de um penteado “natural” (no sentido de não fazer uso de químicas ou apliques) ou de uma química ou ainda um aplique, a mulher usa seu cabelo como seu idioma corporal, uma expressão corporal de sua busca para se integrar a algum grupo e obter dele o respeito e a aceitação que deseja.
Outro aspecto abordado por Goffman bastante relevante para um estudo da performance do cabelo é o conceito de fachada, tanto pessoal quanto social. O autor denomina fachada como “o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação.” (GOFFMAN, 2009, p. 29) A fachada pessoal é composta por “itens de equipamento expressivo, aqueles que de modo mais íntimo identificamos com o próprio actor”, como por exemplo, “vestuário, sexo, idade e características raciais, altura e aparência; atitude, padrões de linguagem, expressões faciais, gestos corporais e coisas semelhantes.” (GOFFMAN, 2009, p. 31). Em outras palavras, a fachada pessoal é a imagem associada a cada indivíduo e que vai além de somente suas características físicas, se tratando do conjunto de atributos percebidos constituintes, segundo Goffman, de sua “aparência” e “maneira”. O cabelo, portanto, é um dos itens de nossa fachada pessoal, que diz tanto de nossa aparência quanto de nossa atitude e conjunto de crenças. A fachada social se refere a características associadas à imagem dos indivíduos em  determinadas representações sociais; portanto, tem um carácter mais abstracto e geral que a fachada pessoal. Nesse sentido, [...] uma determinada fachada social tende a se tornar institucionalizada em termos das expectativas estereotipadas abstractas às quais dá lugar e tende a receber um sentido e uma estabilidade à parte das tarefas específicas que no momento são realizadas em seu nome. A fachada torna-se uma “representação colectiva” e um fato por direito próprio.
Quando um actor assume um papel social estabelecido, geralmente verifica que uma determinada fachada
já foi estabelecida para esse papel. (GOFFMAN, 2009, p. 34)
Pude observar claramente este fenómeno durante meu trabalho de campo. Não é de hoje que determinados modos e modas de cabelo são impostos tanto a mulheres quanto a homens de diversas sociedades pelo mundo. As celebridades – sejam elas modelos, actrizes ou quaisquer pessoas públicas – se encaixam facilmente na situação descrita por Goffman: de maneira geral, se espera que elas sigam as tendências da moda da época para sua imagem pessoal, em especial quando se tratam de seus cabelos e vestuário. No que tange o cabelos, em muitas das sociedades ocidentais a moda parece seguir um processo cíclico em que ora um penteado que dê mais volume ao cabelo é mais valorizado, ora está em vigor um modelo oposto. Se compararmos o período compreendido entre os anos 60 até meados dos anos 90 com o período iniciado a partir de 1995 até a actualidade, veremos que a moda para os cabelos femininos a partir deste segundo período é de cabelos lisos ou com cachos “disciplinados” quase sem volume algum, tanto para brancas quanto para negras. Ou seja, a “representação colectiva” vigente para o cabelo das mulheres – a imagem idealizada para elas – tanto no Brasil quanto nos EUA e em alguns países da Europa, parece ser de um cabelo “disciplinado”: ostentando fios brilhosos e sedosos, com pouco ou nenhum volume, preferencialmente lisos ou, no caso dos cacheados, com cachos bem definidos e com pouco volume.
A maior parte da década de 60 foi marcada por várias opções de penteados volumosos, porém lisos, tanto para as mulheres brancas quanto para as negras. Este quadro só começou a se alterar alguns anos após os movimentos da contracultura, hippie e “Black is beautiful”, originados nos EUA a partir do ano de 1966, que reforçavam, entre outros conceitos, uma imagem pessoal mais “livre”, com penteados considerados mais “naturais” tanto para brancos quanto para negros. Até então, os alisamentos, apliques e perucas de cabelos lisos – ou seja, uma representação colectiva desenhada sob forte influência de padrões caucasianos de beleza e estética – compunham a fachada social esperada tanto das afro-americanas quanto das brancas americanas (Figuras 4 e 5). Tanto para negras quanto para brancas a fachada social era o penteado “disciplinado”: por mais que o cabelo tivesse volume, ele deveria ser liso e penteado de maneira que permanecesse “no lugar”. Para alcançar tal tarefa, as mulheres podiam contar com diversos produtos e ferramentas disponíveis no mercado, que serão discutidos no próximo capítulo.
O que se pôde ver na mídia dos penteados do fim da década de 60 e nos anos 70, foi menos “disciplina”: penteados ainda volumosos, porém com os cabelos soltos. No caso dos negros, o Black Power começa a ganhar espaço na mídia (vide Figura 14 na página 80). Um dos símbolos sexuais da década de 70 foi a atriz norte-americana Farrah Fawcett, que estrelou o seriado “A Panteras”, de grande repercussão nos EUA e no Brasil, entre outros países.
Além de Fawcett, outras actrizes com uma imagem semelhante também eram consideradas símbolos sexuais: Raquel Welch, Sophia Loren, Bruna Lombardi, entre outras. Assim como no período vitoriano, o cabelo “em cascata” parecia ainda ser associado a tentações libidinosas. (HETCH, 2008) No que diz respeito à moda, a década iniciada em 1980 “ficou conhecida por ser a dos exageros, dos acessórios ousados, do volume.”34 A palavra “juba” foi usada por algumas de minhas informantes para definir o volume dos cabelos comum à época.
Ao contrário dos penteados dos anos 60, cujos cabelos apresentavam um “volume disciplinado”, os penteados dos anos 70 e 80 aparentavam uma liberdade maior tanto em matéria de estilos quanto em como os fios se apresentavam: lisos, crespos, ondulados ou cacheados.
Em oposição à aparente liberdade dos penteados do período anterior, a partir de meados dos anos 90 já era possível observar uma diminuição significativa do volume dos  cabelos exibidos na mídia. Na actualidade, é cada vez mais comum que cabelos de celebridades no Brasil e no mundo sejam lisos e com pouco ou nenhum volume.




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