É possível perceber a importância da gestualidade na
análise do quotidiano humano.
Conforme afirma Erving Goffman (1975), o gesto é o
nosso idioma corporal. Tal idioma é uma das ferramentas utilizada pelo
indivíduo na representação de seu “eu” (GOFFMAN, 2009). Se o cabelo é um gesto
corporal, se ele possui diferentes maneiras de se apresentar – e de representar
um indivíduo – e se tais maneiras remetem a hábitos, crenças e status de determinadas
pessoas, então estamos tratando da performance do cabelo. O cabelo é uma
das ferramentas corporais mais expressivas: ele “fala” antes que tenhamos a
chance de nos expressarmos verbalmente. O cabelo compõe nossa imagem para o
mundo; ele faz parte da apresentação externa do indivíduo, aquela que mais se
expõe e que mais rapidamente é percebida por outros. Ou seja, é uma das imagens
corporais que mais “dialoga” com nossos interlocutores. A maneira como cada
pessoa concebe sua própria imagem e como pretende mantê-la está directamente
ligada ao desempenho dos nossos papéis sociais. Assim como em uma peça teatral,
ao exercer um determinado papel na sociedade o indivíduo está, de maneira tácita,
requerendo que sua plateia acredite em sua actuação. Estas formas de actuação
fazem parte das representações das pessoas. (GOFFMAN, 2009) Da mesma forma,
tais representações podem ser percebidas como cerimónias quando reforçam “valores
oficiais comuns da sociedade” e, portanto, idealizados pelos espectadores.
(GOFFMAN, 2009, p. 41)
De qualquer maneira, o indivíduo deverá se expressar
impressionando sua plateia e o modo como será percebido por ela. Portanto, seja
no uso de um penteado “natural” (no sentido de não fazer uso de químicas ou
apliques) ou de uma química ou ainda um aplique, a mulher usa seu cabelo como
seu idioma corporal, uma expressão corporal de sua busca para se integrar a algum
grupo e obter dele o respeito e a aceitação que deseja.
Outro aspecto abordado por Goffman bastante relevante
para um estudo da performance do cabelo é o conceito de fachada, tanto
pessoal quanto social. O autor denomina fachada como “o equipamento expressivo
de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo
durante sua representação.” (GOFFMAN, 2009, p. 29) A fachada pessoal é composta
por “itens de equipamento expressivo, aqueles que de modo mais íntimo identificamos
com o próprio actor”, como por exemplo, “vestuário, sexo, idade e características
raciais, altura e aparência; atitude, padrões de linguagem, expressões faciais,
gestos corporais e coisas semelhantes.” (GOFFMAN, 2009, p. 31). Em outras
palavras, a fachada pessoal é a imagem associada a cada indivíduo e que vai
além de somente suas características físicas, se tratando do conjunto de
atributos percebidos constituintes, segundo Goffman, de sua “aparência” e “maneira”.
O cabelo, portanto, é um dos itens de nossa fachada pessoal, que diz tanto de
nossa aparência quanto de nossa atitude e conjunto de crenças. A fachada social
se refere a características associadas à imagem dos indivíduos em determinadas representações sociais; portanto,
tem um carácter mais abstracto e geral que a fachada pessoal. Nesse sentido, [...] uma determinada fachada social
tende a se tornar institucionalizada em termos das expectativas estereotipadas abstractas
às quais dá lugar e tende a receber um sentido e uma estabilidade à parte das tarefas
específicas que no momento são realizadas em seu nome. A fachada torna-se uma “representação
colectiva” e um fato por direito próprio.
Quando um actor
assume um papel social estabelecido, geralmente verifica que uma determinada
fachada
já
foi estabelecida para esse papel. (GOFFMAN, 2009, p. 34)
Pude observar claramente este fenómeno durante meu
trabalho de campo. Não é de hoje que determinados modos e modas de cabelo são
impostos tanto a mulheres quanto a homens de diversas sociedades pelo mundo. As
celebridades – sejam elas modelos, actrizes ou quaisquer pessoas públicas – se
encaixam facilmente na situação descrita por Goffman: de maneira geral, se
espera que elas sigam as tendências da moda da época para sua imagem pessoal,
em especial quando se tratam de seus cabelos e vestuário. No que tange o
cabelos, em muitas das sociedades ocidentais a moda parece seguir um processo
cíclico em que ora um penteado que dê mais volume ao cabelo é mais valorizado,
ora está em vigor um modelo oposto. Se compararmos o período compreendido entre
os anos 60 até meados dos anos 90 com o período iniciado a partir de 1995 até a
actualidade, veremos que a moda para os cabelos femininos a partir deste
segundo período é de cabelos lisos ou com cachos “disciplinados” quase sem
volume algum, tanto para brancas quanto para negras. Ou seja, a “representação
colectiva” vigente para o cabelo das mulheres – a imagem idealizada para
elas – tanto no Brasil quanto nos EUA e em alguns países da Europa, parece ser
de um cabelo “disciplinado”: ostentando fios brilhosos e sedosos, com pouco ou
nenhum volume, preferencialmente lisos ou, no caso dos cacheados, com cachos bem
definidos e com pouco volume.
A maior parte da década de 60 foi marcada por várias
opções de penteados volumosos, porém lisos, tanto para as mulheres brancas
quanto para as negras. Este quadro só começou a se alterar alguns anos após os
movimentos da contracultura, hippie e “Black is beautiful”, originados
nos EUA a partir do ano de 1966, que reforçavam, entre outros conceitos, uma imagem
pessoal mais “livre”, com penteados considerados mais “naturais” tanto para
brancos quanto para negros. Até então, os alisamentos, apliques e perucas de
cabelos lisos – ou seja, uma representação colectiva desenhada sob forte
influência de padrões caucasianos de beleza e estética – compunham a fachada
social esperada tanto das afro-americanas quanto das brancas americanas
(Figuras 4 e 5). Tanto para negras quanto para brancas a fachada social era o penteado
“disciplinado”: por mais que o cabelo tivesse volume, ele deveria ser liso e
penteado de maneira que permanecesse “no lugar”. Para alcançar tal tarefa, as
mulheres podiam contar com diversos produtos e ferramentas disponíveis no
mercado, que serão discutidos no próximo capítulo.
O que se pôde ver na mídia dos penteados do fim da década
de 60 e nos anos 70, foi menos “disciplina”: penteados ainda volumosos, porém
com os cabelos soltos. No caso dos negros, o Black Power começa a ganhar
espaço na mídia (vide Figura 14 na página 80). Um dos símbolos sexuais da
década de 70 foi a atriz norte-americana Farrah Fawcett, que estrelou o seriado
“A Panteras”, de grande repercussão nos EUA e no Brasil, entre outros países.
Além de Fawcett, outras actrizes com uma imagem
semelhante também eram consideradas símbolos sexuais: Raquel Welch, Sophia
Loren, Bruna Lombardi, entre outras. Assim como no período vitoriano, o cabelo “em
cascata” parecia ainda ser associado a tentações libidinosas. (HETCH, 2008) No
que diz respeito à moda, a década iniciada em 1980 “ficou conhecida por ser a
dos exageros, dos acessórios ousados, do volume.”34 A palavra “juba” foi usada por algumas de minhas
informantes para definir o volume dos cabelos comum à época.
Ao contrário dos penteados dos anos 60, cujos cabelos
apresentavam um “volume disciplinado”, os penteados dos anos 70 e 80
aparentavam uma liberdade maior tanto em matéria de estilos quanto em como os
fios se apresentavam: lisos, crespos, ondulados ou cacheados.
Em oposição à aparente liberdade dos penteados do
período anterior, a partir de meados dos anos 90 já era possível observar uma
diminuição significativa do volume dos cabelos
exibidos na mídia. Na actualidade, é cada vez mais comum que cabelos de
celebridades no Brasil e no mundo sejam lisos e com pouco ou nenhum volume.
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